No regresso de Portugal à aventura do Camel Trophy, após um interregno de 14 anos (desde a edição do Zaire), coube a António Ruas e a Miguel Repas representar as cores nacionais. Para Miguel Repas, este foi um sonho que começou quando tinha apenas 10 anos de idade, e que acabou mesmo por se tornar realidade.
Qual foi o primeiro contacto que teve com o Camel Trophy?
O meu primeiro contacto com o Camel Trophy foi no início dos anos 80.
A TV da época mostrava entre programas, clips de aventura e aventureiros, e neste segmento aparecia o Camel Trophy.
Nos noticiários apareciam igualmente apontamentos de uns grades malucos lá no meio do nada com uns carros amarelos a vencer obstáculos, e toda esta realidade foi preenchendo o meu imaginário.
As revistas foram outra fonte de sonho. Ficava maravilhado com a ideia de que haviam carros que conseguiam progredir em todo o terreno, e isso transportou-se para a minha família e amigos. Fazíamos brincadeiras por todo o lado e imaginávamos-mos a conduzir aqueles carros como autênticos aventureiros.
A minha mãe inclusive, acabou mesmo por comprar na altura um UMM, em que a nossa família, residente na altura em Stº André, perto de Sines, juntava-se a outras famílias amigas e íamos todos explorar a zona em modo TT e eu ficava maravilhado com tudo aquilo.
Com apenas 10 anos de idade, esta realidade aliada às coisas que via na TV e nas revistas, fez crescer em mim um desejo de um dia poder participar numa aventura aos comandos de um carro amarelo e desbravar terrenos onde nunca ninguém tinha estado.
Quando é que surgiu o desejo de participar numa prova do Camel Trophy?
Sempre achei que a participação no Camel Trophy era uma coisa de elites, em que só determinada malta podia participar, vedada portanto a pessoas normais como eu.
Nunca na minha vida eu pensei em inscrever-me em uma prova daquelas. Aliás só havia conhecimento de uma participação portuguesa em 1983, o que era prova provada que para os portugueses a ideia ainda era mais longínqua.
Um dia, o Tiago Oliveira, um grande amigo meu, aparece-me em casa com dois boletins de inscrição no Camel Trophy. Aceitei o desafio, mas sem qualquer tipo de esperança em ser selecionado, pois nunca na vida tinha ganho nenhum concurso, ou enviado algum cupão na esperança de ganhar alguma coisa.
O Tiago insistiu que eu fizesse a candidatura, e quando dei por mim tinha sido escolhido para as provas de seleção. Foi tudo uma catadupa de experiências fantásticas que surgiram sem eu estar realmente à espera.
Devo muito ao meu amigo Tiago por ter insistido, pois eu nunca me achei uma pessoa selecionável para este tipo de realidades.
Como decorreu o processo de selecção nacional, para apuramento dos participantes e suplentes?
Opá foi muito engraçado, pois foi tudo muito espontâneo. O Tiago um dia liga-me a dizer que alguém da organização do Camel Trophy lhe tinha ligado e que lhe tinha feito uma entrevista ao telefone.
Haviam uma série de questões que lhe foram colocadas, como por exemplo, o nível de inglês, o nosso espirito aventureiro, mecânica de automóveis, personalidade, valores inerentes ao Camel Trophy, etc. Ora, sabendo de antemão as perguntas, ainda tive um bocadinho de tempo para me preparar, na esperança de também eu receber o tal telefonema.
Umas boas horas mais tarde tocou o telefone, e podem imaginar a minha alegria quando percebi de onde era. Portanto este seria a primeira etapa no processo de seleção.
Após esta abordagem, chamaram-me para integrar o grupo de selecionados para as provas físicas na Lousã. Sempre fiz muito desporto e estava muito à vontade neste tema. Já não posso dizer o mesmo em relação à mecânica automóvel (risos).
Outras provas, como as de liderança, eram muito giras. Consistiam em desafios organizacionais. Aí estava mesmo em território desconhecido, mas confiei sempre muito na minha capacidade de improviso e até correu bem.
Para as provas da Lousã fiz umas preparações específicas. Passei a fazer um treino intensivo de corrida e de bicicleta para ganhar ainda mais capacidade física e atlética a um nível competitivo.
Comecei a olhar para o Camel Trophy como um desafio onde tinha que estar ao meu mais alto nível. Passei igualmente a tratar de colmatar as minhas principais lacunas e uma delas era mesmo a mecânica automóvel.
Falei com alguns amigos que me indicaram um concessionário da Land Rover, a JOL, que tinha oficinas próprias e aos quais apresentei o desafio a que estava sujeito, explicando-lhes todo o processo em que estava envolvido. A minha proposta foi oferecer-me como assistente de mecânico, onde todas as manhãs dirigia-me às oficinas, onde em troca da minha disponibilidade, ensinavam-me as técnicas mecânicas que eu desconhecia. Pareceu-me na altura uma troca justa. Mão-de-obra em troca de conhecimento.
Na Lousã consegui passar em todas as provas a que fui sujeito, e isso trouxe-me muita alegria e satisfação. Nessa altura achei mesmo que podia ser selecionado.
Com as etapas seguintes, fui conhecendo melhor o género de provas, os meus companheiros, os meus pontos fortes e pontos fracos, e comecei fazer um trabalho muito orientado e objetivo para me tornar uma pessoa selecionável.
A minha estratégia foi bem-sucedida.
Qual foi a sua reacção (e a dos seus familiares e amigos mais próximos) quando soube que ia representar Portugal no Camel Trophy?
A reação de todos os meus amigos e familiares foi maravilhosa. Toda a gente sabia o que era o Camel Trophy. Ter alguém que lhes era próximo a participar e representar Portugal nesta aventura com tanto prestígio, era simplesmente surreal.
Muita gente a incentivar-me para continuar o treino físico, igualmente para a parte do estudo, o que envolvia o bom conhecimento território, o carro…
Até no trabalho o apoio foi fantástico. Nessa altura trabalhava no Jardim Botânico de Lisboa e até me dispensaram o tempo necessário para a preparação assim como para a participação na prova.
Quais foram o melhor e o pior (ou mais difícil) momentos da prova em que participou?
Na realidade acho que só tenho os melhores momentos e é difícil indicar um em particular, ou selecionar um pequeno grupo de momentos.
O orgulho em estar a participar e sentir-me realizado, superava qualquer momento menos bom. A partilha com o Ruas foi fantástica, tornamos-mos bons amigos.
Os nómadas que fomos conhecendo ao longo do caminho foi outra realidade fantástica. Paisagens maravilhosas que deslumbrámos. Os outros concorrentes das outras seleções com tudo o que isso envolveu.
O Camel de 1997 foi completamente diferente dos anteriores e toda a gente queria que corresse bem e correu.
Acho que “pior” foi mesmo o ter que terminar tal aventura. (risos)
Qual é a recordação/memória mais marcante com que ficou?
Como disse antes, eu tive momentos fantásticos durante todo o processo, desde as seleções até à viagem propriamente dita. Houve no entanto um momento em particular, em que eu e o Ruas estávamos sozinhos, na Mongólia, no meio do nada, em que a paisagem era de cortar a respiração de tão deslumbrante.
Afastei-me um pouco e tive um momento de contemplação em que me senti realizado. Tomei consciência que aquele momento era único e que estava a fazer uma coisa realmente especial. Esse momento foi muito marcante para mim.
Outros momentos marcantes foram nas provas de seleção juntamente com o meu amigo Tiago Oliveira. O incentivo mútuo para superarmos as diferentes etapas, foi muito marcante para mim.
Em Marrocos toda a entre ajuda dentro da equipa foi sublime, o espirito de corpo esteve sempre presente, era como se todos fossemos um, ninguém ficava para trás.
Foi tudo muito intenso, foi mesmo uma experiência de vida.
Se houvesse outro Camel Trophy, voltava a inscrever-se e gostaria de participar?
Seguramente. Principalmente pelo ambiente e os amigos que fazemos. No entanto sei que seria impossível pois os que já participaram não podem repetir. Pelo menos era essa a regra.
No entanto os participantes podem fazer parte do staff das equipas de preparação. Na altura equacionei essa possibilidade.
Tive imensa pena que a prova tenha terminado completamente.
De todas as edições do Camel Trophy, qual foi a sua favorita? Porquê?
De todas a edições, a minha favorita é a Mongólia 1997. Porque é a minha. (risos)
Ainda mantém um contacto próximo com todos os “ingredientes” do Camel Trophy (Land Rover, Todo-o-Terreno, expedições, aventura, …)?
Sim, mantenho. Não com todos, mas com alguns.
A minha vida profissional leva-me a deslocar-me para zonas remotas, a utilizar veículos todo o terreno, a fazer expedições. Eu faço isso profissionalmente. Eu sou consultor internacional de impacto ambiental e trabalho sobretudo com temas ligados à bio diversidade e isso leva-me para zonas muito remotas, onde todos este “ingredientes” do Camel Trophy acabam por acontecer.
Viajo em equipa. Equipas muito focadas e multidisciplinares e que têm que se deslocar para zonas muito isoladas. Para teres uma ideia, viajo para o Djibuti, Gana, Costa do Marfim, Tunísia, Egipto, Líbano, Israel. Projetos em parques eólicos no meio do deserto ou no topo de montanhas.
Gosto muito do que faço e a experiência que adquiri com o Camel Trophy perpetua-se e a memória está viva.