A edição nº 3307 do jornal “Região de Leiria“, de 11 de Agosto de 2000, publicou na secção Culturas um artigo sobre a participação da equipa Portuguesa na edição Camel Trophy 2000 – Tonga/Samoa.
O artigo original pode ser consultado na edição online do jornal “Região de Leiria“, e é aqui reproduzido:
Aventura no Pacífico
Nuno Filipe no último Camel Trophy
Texto de João Carreira
“One life. Live it”. A filosofia quase que foi gravada nos barcos e durante três semanas navegou ao sabor das ondas, assim como que a dizer que estava ali para lembrar, como se eles não o soubessem, que existem experiências que só se vivem uma vez. Nuno Filipe, antes da partida, já o sabia, hoje já o pode afirmar com propriedade que um sonho foi cumprido.
No Camel Trophy foi a revolução total, a organização abandonou aquela imagem dos condutores dos jipes da Land Rover, a caminhar para os quarentões de barba cerrada, esqueceram a lama e as quatro rodas, portanto, e viraram-se para o mar, à procura de jovens até aos trinta anos que pudessem reinventar uma competição que se passará a chamar doravante qualquer coisa como Camel Active. Fica, contudo, a certeza que continuará a ser feita para homens e mulheres de “barba rija”.
No passado fim-de-semana Nuno Filipe não teve descanso na Praia da Vieira, de onde é natural e vem, amiúde, retemperar forças. O seu regresso do mítico Camel Trophy há pouco mais de uma semana motivava a curiosidade de amigos e conhecidos, desejosos de comprovar através das fotografias a presença do seu conterrâneo nas ilhas de Tonga e Samoa, lá para “sol posto”.
A aventura de Nuno Filipe, gestor de recursos humanos, habituado à gravata e à papelada durante a semana, começou meses antes da competição propriamente dita, coincide com as primeiras semanas de pé descalço e calção molhado em Murcia, sul de Espanha, e em Cobnor, em Inglaterra, nas provas de selecção. Um amigo desafiara-o para tentar integrar o lote dos eleitos e, pronto, Nuno Filipe fez-se ao… mar. Só de Portugal chegaram 6500 candidaturas e a equipa só podia ser constituída por duas pessoas. Percebe-se, pois, porque razão Nuno Filipe frisou tantas vezes a palavra “dura” para adjectivar as provas de filtragem.
Cobras e lagartos
No final de Junho uma viagem de 52 horas que terminou no mini-aeroporto de Tonga, surpreendido de dois em dois dias pela chegada de um avião, colocou-o na linha de partida para uma competição que só se vive uma vez. E com ela vieram os azares para mais tarde recordar. “Desastres” mais ou menos técnicos à parte, comecemos pela cobra. Não se sabe quem ia no caminho de quem, o certo é que se cruzaram, Nuno Filipe e a cobra. Ela não terá gostado de ser pisada e, venenosa, toca de responder com uma mordedura que lhe atravessou o fato. Não aquele que está habituado a utilizar em Lisboa, esse é para outras selvas. Nuno Filipe ainda terminou essa prova, utilizou uma bomba de sucção do kit de primeiros socorros para extrair o recado da víbora, mas teve mesmo que se deslocar até ao barco onde se encontravam os médicos.
Nada mau para começar. O companheiro, João Martins, do Porto, não quis ficar atrás e, não se sabe também quem ia no caminho de quem, o certo é que se cruzaram: João Martins e o arame farpado, em resultado de uma queda. Outra ilha, outro encontro indesejável. Desta vez o incidente deu-se com os dois, mas foi João Martins o azarado. Aqui sabe-se só que se cruzaram com uma dezena de cães nativos, já se adivinha quem ia a fugir de quem, Nuno Filipe pela água para evitar os canídeos, João Martins pela areia não se furtou a que dois dos cachorros fizessem o gosto ao dente.
Entre etapas ainda houve tempo para o jovem da Praia da Vieira viver mais uma experiência curiosa. Numa praia deserta, um caminho desembocava num nativo sentado por terra e “armado” de uma catana. Nuno Filipe não desarmou e, corajoso, acercou-se deste, ainda que estivesse seguro que aquela catana não estaria ali como instrumento de pesca. Mas o susto, presume-se, foi decerto maior para o habitante de Tonga que, sem perceber palavra daquele “ser” que vestia um fato de mergulho e armado de um sistema GPS teimava em perguntar-lhe sobre um qualquer “ponto” escondido na ilha e que dava pelo nome de “pizza”. Escusado será dizer que o único gesto universal que resultou da comunicação foi um aceno de adeus que deixou ambos bem mais descansados.
Pelo meio, dois aniversários. Um, o do rei de Tonga, Taufa’ahan Tupou IV, “filho do Deus Criador”, e que cria todos os anos uma imensa romaria até ao lugar de Nuku’alofa. O segundo apagar de velas foi o do próprio Nuno Filipe, que cumpriu ali 27 anos, estes sim, serão difíceis de esquecer. Para trás ficara o túnel submerso e infindável que quase lhe acabou com o fôlego, mas que lhe permitiu provar que a luz ao fim do túnel às vezes só mesmo no regresso, o tubarão que esteve à distância de uma braçada, que ele não deu, claro, enfim, a experiência de uma vida que viveu longe da Praia da Vieira, mas que trouxe para cá, bem arranjadinha na sua memória.
Ah! No meio da aventura ficou evidente que a classificação até nem era o mais importante, mas fica a indicação que a equipa portuguesa, entre 16 concorrentes, ficou no 9º posto.
Nuno Filipe no último Camel Trophy
(conteúdo reproduzido com autorização do jornal “Região de Leiria“)