Na edição de 15 de Maio de 1995, o jornal “PÚBLICO” publicou na sua secção de Desporto dois artigos acerca do Camel Trophy, edição Mundo Maya – 1995. Um deles, faz um resumo histórico do Camel Trophy, seus objectivos, dificuldades e modo de funcionamento. No outro, é apresentada uma entrevista a Pedro Vilas-Boas, um dos 2 primeiros participantes Portugueses no Camel Trophy, na edição de 1983 (Zaire).
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Aventura no mundo maia
Os dias diferentes do homem
Carlos Filipe
O emprego pode esperar, o casamento também. Se o ânimo é leve, a tarefa é mais pesada, feita de canseiras e múltiplos esforços. Mas sempre há um Camel Trophy, mais que uma corrida contra si próprio, um exemplo bem acabado de aventura para o homem que gosta de romper com a rotina dos dias cinzentos.
Para trás, ficou o período de incertezas, de angústias suscitadas pela leitura atenta e repetida de resmas de papel, repletas dos mais variados dados logísticos, horários, recomendações ou determinações; cartas geográficas, meteorológicas, listas de equipamento, formulários a preencher; seguros, ficha médica; e um volumoso mas precioso «dossier» de informação técnica do carro. Arrumada também já está a questão do emprego, com férias ou com licença e o melindroso problema do adiamento do casamento. Algo que terá custado a digerir ao noivo da candidata francesa, que levou a sua avante, mesmo que não tenha passado nas rigorosas provas de selecção. Felizes, então, aprestam-se os 40 concorrentes à 15ª edição do Camel Trophy 95, uma aventura de 19 dias num percurso de 1700 quilómetros pelos caminhos da antiga civilização maia, a temática escolhida pela organização.
Para as memórias já ficaram as primeiras dificuldades, como as exigentes provas de selecção. Portugal testemunhou mesmo as aptidões técnicas e a solidez física e intelectual de um conjunto de equipas. De seguida, na Turquia, completou-se o programa com a designação final das duplas de 20 nacionalidades concorrentes à prova. A partir de quarta-feira e até ao dia 8 de Junho, a caravana andará em trabalhos pelas rotas dos maias, México, Guatelama, El Salvador e Honduras, tendo como ponto de partida e chegada Belize, reserva de rara beleza e valor arqueológico, num luxuriante enquadramento paisagístico.
O Camel Trophy não é um rali, ou raide-maratona, mas sim de uma expedição, centrada num tema preciso. O espírito do evento é um claro apelo à organização e sentido de entreajuda, como que uma reconstituição, nos tempos modernos, dos antigos corpos expedicionários.
A perícia dos concorrentes será constantemente avaliada e qualquer decisão mal ponderada colocará em risco o andamento da coluna — a pior opção poderá levar todo o grupo a um diminuto avanço diário, comprometendo o objectivo da missão e o descanso dos aventureiros. A tarefa é árdua e, por isso mesmo, foi preparada com redobrados cuidados, meses a fio, desde a preparação física à aquisição dos conhecimentos técnicos. Agora, os eleitos sabem que, dos muitos candidatos, são os mais capazes para levar o desafio até ao fim.
Mais procura que oferta
Ao Camel Trophy concorre quem quer, desde que tenha mais de 21 anos e carta de condução, desde que nunca tenha requerido uma licença desportiva e não integre qualquer ramo das Forças Armadas. Sujeitar-se-á a um rigoroso e intenso processo de selecção, uma vez que é elevado o número de candidaturas, que anualmente chega a atingir um milhão. A Worldwide Brands Incorporated (WBI), subsidiária do Grupo RJR Nabisco, encarrega-se de conduzir e custear todo o sistema organizativo. Fá-lo há 15 anos, em estreita colaboração com o Grupo Rover. Só em 1980, no primeiro ano da prova, não foram utilizadas as viaturas do fabricante inglês. De então para cá, seja Land, ou Range, os carros do Camel Trophy são Rover. Este ano voltarão a ser utilizados os Discovery Tdi 5 portas, na edição comemorativa do 15º aniversário do Land Rover. No total, a caravana é formada por 32 viaturas, 20 rigorosamente iguais para as equipas, quatro para os membros da organização, outras três de apoio e mais cinco para as operações de logística.
A WBI, com sede na Alemanha e formada em 1981, comercializa relógios e linhas de vestuário e calçado de aventura. Esta prova é feita de acordo com a sua estratégia de «marketing», que diz reflectir a imagem e o estilo dos seus produtos. Às equipas concorrentes (dois elementos por país) é exigido que demonstrem grandes aptidões físicas, quer de resistência, quer de agilidade mental, trabalho de equipa, muita personalidade e bom desempenho na condução em todo-o-terreno. Mas fundamental é mesmo o talento especial para fazer face ao inesperado. O Camel Trophy não é uma corrida. Acima de tudo, é uma prova de todo-o-terreno com percurso comum a todos os concorrentes e que será feito em caravana. Como ganhá-lo? Mediante classificações atribuídas ao desempenho nas provas especiais. E se o principal troféu distingue a mais bem pontuada, um outro não menos importante premeia a dedicação do conjunto que, ao longo do percurso, mostrar melhor espírito de equipa, por votação entre todos os concorrentes. Na edição de 1994 — Argentina-Paraguai-Chile –, a equipa espanhola, para além do triunfo absoluto, conquistou ainda o troféu das Provas Especiais, e a dupla sul-africana arrebatou o troféu para o Espírito de Grupo.
Dos maias aos ingleses
Remonta a 1500 a. C. a história de Belize, ponto de partida para a aventura no mundo maia. E mesmo 25 séculos depois permanecem visíveis os traços culturais da civilização que lhe deram origem, uma das mais importantes do mundo ocidental. Ali passaram os conquistadores espanhóis e os colonizadores britânicos. Até 1981, ano do nascimento da jovem democracia de Belize, independente desde então da soberania inglesa.
Desconhece-se a origem etimológica do nome deste pequeno país com 200 mil habitantes. A fertilidade das suas terras atraiu os maias, que aí ergueram inúmeros templos em forma de pirâmide, sendo o maior deles o castelo, jóia arqueológica do país, de impressionante perfeição arquitectónica, com 40 metros de altura e situado no planalto de Xunantunich. E esse é outro dos mistérios da ancestral civilização, pela quantidade de mão-de-obra exigida e pela escassez de materiais de construção apropriados na região, envolvida por selva tropical.
Esse espírito do desconhecido e de perfeccionismo atraiu a organização do Camel Trophy. Um novo rumo para a aventura que há 15 anos vai percorrendo o globo em busca de novos ambientes e colorações, desde a luxuriante Amazónia até à gelada estepe siberiana.
Desta vez, a mutação de ambientes será mais flagrante, pelo entrecruzamento dos mais variados terrenos e climas, desde as densas e tropicais selvas de Belize aos bosques verdejantes do México, passando pelos gelados picos guatemaltecos, em cadeia montanhosa que se estende pelas Honduras, até às ásperas e desérticas paisagens vulcânicas de El Salvador. Calor tropical, extrema humidade, as pistas de barro em época de chuvas, passagens de montanha e perigosas travessias de rios farão do Camel Trophy uma aventura tão exigente quanto perigosa, mas estimulante, por se tratar de uma alteração do estilo de vida dos seus participantes. A descoberta da antiga civilização maia e dos seus descendentes, nos cinco países atravessados pela prova, procurando em cada passagem os vestígios mais remotos, é a promessa de dias diferentes para os concorrentes ao Camel Trophy.
Uma aventura portuguesa
Vilas Boas, o profissional
«Isso já foi há muito tempo…» Pedro Vilas Boas, mesmo assim, lembra-se da sua participação no Camel Trophy, a única em que Portugal esteve representado com uma equipa. Afastado de Lisboa, bem como dos passeios todo-o-terreno pelo país, primeiro com José Megre, depois a solo, este engenheiro electrotécnico de 54 anos reside e trabalha actualmente em Évora. Segundo diz, deixou de ser aventureiro de profissão e engenheiro nas horas vagas, para ser engenheiro a tempo inteiro e aventureiro nos fins-de-semana.
Continua a andar de jipe e por uma causa ainda mais louvável. Pelo Alentejo, vai procurando a água que rareia e os locais mais adequados para a construção de estruturas para aproveitamento dos parcos recursos hídricos da região.
«Há muitos anos», disse-o ao PÚBLICO. Mas como esquecê-lo? Aconteceu em 1983, no Zaire, na quarta edição do Camel Trophy, ainda o veículo utilizado era o clássico Land Rover SIII 88. Fez equipa com Manuel Pinto e, apesar de ser uma estreia, concluíram na segunda posição. Os portugueses, nas aventuras do todo-o-terreno, eram precoces. No ano anterior, em 1982, já Vilas Boas terminara o seu primeiro Paris-Dakar, que então realizava a quarta edição, a marcar o início da saga portuguesa e da UMM nas pistas africanas. O «slogan» corria anualmente, como prova da fiabilidade das mecânicas e da resistência física e anímica dos portugueses: «X à partida e X à chegada». E mesmo sem subidas aos pódios cumpriam.
O Camel Trophy no Zaire, segundo Vilas Boas, até nem foi difícil: «Tinha feito o meu primeiro Dakar e nem achei complicado. A verdade é que estava tudo relativamente seco e acabou por ser bastante agradável.» Mas foi a aventura e o gosto pelo desconhecido que o levaram de novo para as outras estradas: «É sempre o grande atractivo, para além da camaradagem que se faz.» Depois, sempre era uma prova diferente, com quase a nada a ver com os raides-maratona tipo Dakar, e mais de acordo com o seu gosto: «Era e continua a ser mais uma expedição que qualquer outra coisa, onde o sentido de entreajuda mais conta, resumindo-se a parte competitiva a uma prova especial diária para o ordenamento da classificação geral.»
No entanto, também houve algo que nunca foi do seu agrado. Não só seu, mas de todo o grupo de concorrentes latinos: «É que a organização é muito alemã. Demasiado alemã. Não é que seja do tipo militarista, mas a verdade é que para os latinos acaba por ser aborrecida. Não tínhamos hipóteses para improvisar um pouco, pois nunca nos deixavam sair da coluna. E depois eram os horários, inflexíveis. Era algo a que não estávamos habituados, nem no Dakar.»
Quanto à condução, Pedro Vilas Boas recorda que tinha um grau de dificuldade acrescida: «Era uma prova eminentemente de todo-o-terreno, com obstáculos muito difíceis de transpor. Julgo que não há nada igualável. E depois são os meios de que se dispõe. No Zaire, cheguei a ver helicópteros a transportar os carros de um lado para o outro.»
No único ano em que Portugal foi contemplado pela organização para a formação de uma equipa, Pedro Vilas Boas lembra que apareceram cerca de 3000 candidatos: «Preenchemos um inquérito e a partir daí foram oito os escolhidos para as selecções, nas Canárias e em Inglaterra.»
Uma nova oportunidade para concorrer não será coisa que hoje o excite particularmente, mas, mesmo já não sendo o profissional da aventura de outrora, ainda assim não desdenharia a hipótese de acompanhar o Camel Trophy, desde que fosse só para gozar o pagode: «Se fosse como jornalista…»
Entretanto, a representação peninsular continua a cargo dos espanhóis. Dos quatro apurados nas provas de selecção nacional, realizadas em Fevereiro, em Lagos, no Algarve, e para a etapa final em Istambul, na Turquia (a selecção internacional, onde a organização preparou um mini-Camel Trophy nocturno), sobraram Luis Moret e Belén Sanchez, a primeira mulher a integrar a equipa espanhola. Ela é catalã, tem 28 anos e é desenhadora de moda. Ele é estudante em Gerona e é cinco anos mais novo que Belén.
(conteúdo publicado com autorização do jornal “PÚBLICO“)